sábado, 2 de julho de 2011

Mensagem à Poesia

Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.

Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso
reconquistar a vida
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com cuidado – não a magoem... – que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento
Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa estrada
Junto a um cadáver de mãe: digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber, contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável
Solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.

Mas não a traí. Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha ausência.
É também um sortilégio
Do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz. Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo. Talvez eu deva
Morrer sem vê-Ia mais, sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia. Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abastecem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem um pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.


Vinicius de Moraes, o verdadeiro poeta brasileiro, tenta resistir à poesia. O poema acima foi extraído do livro "Antologia Poética", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 160.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

UMA RAZÃO A MAIS PARA SER ANTICAPITALISTA

Te amo
e odeio tudo que te deixa triste.

Se o mundo com seus horários e famílias
e fábricas e latifúndios e missas
e classes sociais, dores e mais-valia
e meninas com hematomas
no lugar de sua alegria

insistir em te deixar triste,
apertando tua alma
com suas garras geladas,
teremos, então, que mudar o mundo.

Nenhum sistema que não é capaz
de abraçar com carinho a mulher que amo
e acolher generosamente minha amada classe
é digno de existir.

Está, então, decidido:
Vamos mudar o mundo,
transformá-lo de pedra em espelho
para que cada um, enfim, se reconheça.

Para que o trabalho não seja um meio de vida
para que a morte não seja o que mais a vida abriga
Para que o amor não seja uma exceção,
façamos agora uma grande e apaixonada revolução.

Mauro Iasi

segunda-feira, 25 de abril de 2011

À RENAJU, onde quer que se encontre,

                   Camaradas insurgentes:

É com grande alegria e em tom de inquietação que escrevemos estas linhas. Estamos com Gadotti quando ele afirma que, para praticar educação popular, é necessário “aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser”.  Tais objetivos, na nossa perspectiva, necessitam de dedicação, tesão, amor, diálogo e transgressão ao óbvio, ao comum, ao que nos é dado como acabado ou impossível de mudar.
Por isso, organizar-se para além da individualidade burguesa é necessário. Não acreditamos em ações isoladas, particulares e descontínuas na formação de uma práxis emancipatória. A construção de um mundo radicalmente diferente pressupõe movimentações conjuntas, ainda que não iguais, a fim de garantir a força da pressão das diversas frentes de combate às opressões, sejam aquelas diretamente ligadas ao sistema de produção capitalista, sejam as ditas “transversais”, como as de etnia, gênero e meio-ambiente, com suas ressignificações e potencializações.
No campo da extensão popular em direito, entendemos que a RENAJU cumpre, com suas limitações, o papel de organização nacional das AJUPs. Ocorre, contudo, que as restrições estão demasiadamente manifestas na atual conjuntura.
Por um lado, é papel da Rede difundir e instrumentalizar a criação e a manutenção dos projetos de AJUP. Não faria sentido organizar-se para a estagnação ou diminuição do movimento de prática em educação popular.
Por outro lado, a educação popular não se faz apenas incentivando a existência e fortalecimento dos núcleos localmente, sendo necessário, também, a atuação organizativa conjunta dos projetos que compõem a RENAJU em parceria com os movimentos sociais.
Nenhum dos papéis político-organizativos mencionados tem sido cumprido.
É certo, entretanto, que estamos em um ambiente revolucionário em relação à anestesia, burocracia, tecnicismo, conservadorismo, superficialidade e dogmatismo da educação jurídica em nosso país.
Sem dúvida, estamos em um espaço de resistência e justiça para autonomia. Isso se evidencia em cada gesto, olhar, palavra, mística, troca de experiência e dedicação que os núcleos depositam em nossa construção coletiva.
Nesse sentido, visando a contribuir para a organização da Rede, o SURJA, ao mesmo tempo que coloca suas impressões iniciais, solicita formalmente  a entrada na Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias – RENAJU.

Em Eldorado do Sul, 21 de abril de 2011.


Há-braços libertários insurgentes,
Serviço Universitário de Resistência e Justiça para Autonomia – SURJA.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

I CARTA DE INSURGÊNCIAS

"O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente. Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Objeto sujo de sangue. Sou um objeto que cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige. O mecanicismo exige e exige a minha vida. Mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita. Há uma coisa dentro de mim que dói. Ah, como dói e como grita pedindo socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem? tal é o meu destino humano. O que me salva é grito. Eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás do atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto urgente."(Clarice Lispector em Água Viva)

          É chegada a hora de des-anestesiar. Já não sem tempo levantamos e, pouco a pouco, saímos dessa esteira que nos acomete diariamente. Permitir-se olhar para os lados, em meio a essa cegueira, é o suficiente para entender que estamos todos iguais, retos, neutralizados, mudos.
         Estar assim, nesse ambiente abafado e quiçá sufocante, demonstra que já não há como manter-se nessa artificial estufa que nos fecha em conhecimentos técnicos, dogmáticos, conservadores. É necessário ousar; é necessário sair-de-si.
         Dando as mãos para o primeiro passo, nossos conhecimentos separados foram reunidos em um liquidificador, tais quais frutas, interdisciplinares. Abraçados, nosso segundo passo foi o de ligar o liquidificador, quando compartilhamo-nos todos, deixando de estarmos juntos apenas externamente, no que notamos transdisciplinar. E agora, coloridos, misturados e inquietos, vemos com urgência a chegada do terceiro passo: levar esses conhecimentos para fora do ambiente acadêmico.
         A brutal desigualdade social na América Latina e o desgoverno da educação e dos serviços públicos clamam por ações. As ruas, os oprimidos e a poesia chamam a todos para o diálogo: a troca de saberes e experiências, na busca por outros mundos possíveis, faz-se essencial para que nos apropriemos do sentimento de urgência dos oprimidos.
         Nós objetos-gritantes do sul do sul do país, envoltos no sangue de séculos de dominação e subserviência e em fuga do congelamento sulino, saímos em grito, em coro, em ludicidade e tesão em busca da co-laboração e união, lutando contra a despolitização, a mecanicização e o neutralismo conservador. É chegada a hora de des-anestesiar.
         Des-anestesiar-se significa manter as veias abertas como memória e resistência; significa desacobertar verdades, normalidades, estufas, separações, messianismos; significa recolorir-se, reencantar-se, carnavalizar, entesar em melodias esse aquecimento coletivo que atravessa até as mais frias terras.
         É chegada a hora de des-anestesiar porque é chegada a hora de abrir os olhos para o que está nas ruas, sair-se povo, sentir-se povo e, com as dores do mundo e dos limites que certamente virão, prosseguir em busca que algum dia já não haja limites.


Em Pelotas/RS, inverno de 2010.

Serviço Universitário de Resistência e Justiça para Autonomia – SURJA

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

DESPERTAR PARA AGIR: Assessoria Universitária Transdisciplinar

Serviço Universitário de Resistência e Justiça para Autonomia – SURJA



Como proposta inicial apresentaremos o "SURJA" através de um pequeno trecho do artigo elaborado pelos surjianos Lawrence Estivalet de Mello, Pablo Soares Herzberg e Sabrine Tams Gasperin.

O presente artigo, oriundo de discussões do Serviço Universitário de Resistência e Justiça para Autonomia (SURJA), busca levantar inquietações teóricas às Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs). Para tanto, solidifica bases referenciais, partindo da educação popular como prática emancipatória, para, a seguir, observar da necessidade da transdisciplinaridade  nessa prática, cujo agir político necessariamente será vinculado às realidades sociais.


           "Na busca pela implementação do SURJA – Serviço Universitário de Resistência e Justiça para Autonomia –, projeto estudantil vinculado à Universidade Federal de Pelotas, emergem perguntas tanto de ordem prática quanto de ordem conceitual. Tentaremos aprofundar algumas dessas problemáticas, com a intenção de provocar um debate sobre justificativas, possibilidades e limites de atuação de uma AJUP e, em especial, de uma assessoria transdisciplinar, e não tão-somente jurídica.
            O objeto, nesse sentido, é a educação popular praticada por estudantes universitários. Estudantes que não serão somente de um curso, mas de vários, visando à construção de uma educação plural e dialógica.
            A necessidade ou justificativa desse estudo é proveniente da convicção de que a educação popular se solidifica como uma prática construtora de consciência, no sentido emancipatório do termo, tanto de estudantes quanto da comunidade que com eles trocará experiências. Assim, necessário estudar-se essa educação popular feita nas universidades, pelas universidades, fora das universidades e para as universidades.
            Também é escopo deste artigo tecer uma investigação preliminar dos limites da educação popular quando trabalhada por disciplinas isoladas, sejam elas ciências sociais, sociais aplicadas ou naturais. Disso decorre, enquanto metodologia, uma proposta transdisciplinar de educação popular universitária – e portanto uma proposta transdisciplinar de agrupamento de estudantes em torno de estudos e referenciais para assessoria universitária popular.
            Observaremos, por fim, da importância de trabalharmos em diálogo com as realidades sociais, produzidas e resultantes de teias históricas diversas, para que entendamos da dificuldade de serem trabalhadas as opressões, plurais, distintas, entrecruzadas, como também de alguns pontos que as escondem, normalizam, naturalizam tanto na comunidade quanto nos estudantes.
Desse modo, esclarecidas as problemáticas envolvendo nossas noções de assessoria, porque educação popular, de universitária, porque mediada por estudantes de várias áreas, e de popular, porque atenta ás realidades sociais, resta lançar as primeiras palavras do SURJA, para que possamos lançar-nos juntos, cada vez mais de nós, a uma práxis emancipatória. [...]"

O SURJA pretente através deste BLOG multiplicar a ideia da Assessoria Popular, bem como divulgar os trabalhos desenvolvidos pelo grupo e os textos produzidos por cada Surjiano.